Nicolas Walter - Do Anarquismo
Nicolas Walter - Do Anarquismo
“O que os anarquistas rejeitam é a institucionalização da organização, o estabelecimento de um grupo particular cuja função é organizar outras pessoas. A organização anarquista seria fluida e aberta; assim que uma organização endurece e se fecha, cai nas mãos de uma burocracia, torna-se instrumento de uma classe e expressão da autoridade, em vez de elo de coordenação da sociedade. Todo o grupo tende para a oligarquia, o governo de poucos, e toda a organização tende para a burocracia, o governo dos profissionais; os anarquistas devem lutar sempre contra tais tendências, tanto hoje como amanhã, quer na própria casa quer na casa alheia.”“Uma forma atenuada de ação inspirada pelo niilismo é a boêmia: (...) em vez de atacar a sociedade, o boêmio escapa dela – ainda que nela viva e a seu cargo, muito embora viva sem se conformar com os valores da dita sociedade.”
“...o que podemos sugerir de mais importante não é apenas que o fim não justifica os meios, mas também que os meios determinam o fim: os meios são fins, na maior parte dos casos. Podemos estar certos das nossas próprias ações, mas não das suas conseqüências.”
Nicolas Walter propõe neste livro uma reflexão sobre os primeiros 100 anos do Anarquismo.
Foi escrito na Inglaterra em 1969 e expressa a opinião pessoal do autor
que se seguiram a 15 anos de leituras e discussões acerca do anarquismo
e depois de 10 anos de atividade no movimento e na imprensa
anarquistas. Fiquemos, pois, com suas palavras.
Liberalismo e Socialismo
“Como os
liberais, os anarquistas querem a liberdade; como os socialistas,
querem a igualdade (...). A liberdade sem igualdade significa que os
pobres e os fracos são menos livres que os ricos e os fortes, e a
igualdade sem liberdade significa que somos todos escravos em conjunto.”
“Os
anarquistas conideram o progresso de maneira totalmente diferente; na
realidade, consideram muitas vezes que não há progresso algum. Nós vemos
a história não como um desenrolar linear ou dialético numa determinada
direção, mas como um processo dualista. A história de todas as
sociedades humanas é a história de uma luta entre governantes e
governados, entre opulentos e miseráveis, entre os que querem comandar e
ser comandados e os que querem libertar-se, assim como aos seus
camaradas; os princípios de autoridade e de liberdade, de governo e de
rebelião, de Estado e de sociedade estão em perpétuo conflito.”
“A nossa
única esperança é que, à medida que o conhecimento e a consciência se
desenvolvem, as pessoas tornar-se-ão mais aptas para descobrirem que
podem organizar-se sem necessidade de nenhuma autoridade.”
“...apoiamo-nos
na liberdade de expressão, de reunião, de movimento, de comportamento e
particularmente na liberdade de ser diferente; por outro lado,
apoiamo-nos na igualdade das posses, na solidariedade humana e
particularmente na partilha das possibilidades de decisão.”
“A essência do anarquismo, a única coisa sem a qual não há mais anarquismo, é a recusa da autoridade de um homem sobre outro.”
Democracia e Representação
“...a
democracia não é o governo do povo – a democracia é na realidade uma
contradição lógica, uma impossibilidade física. A verdadeira democracia
só é possível numa pequena comunidade, onde cada um pode tomar parte em
todas as decisões; nesse momento, já não é necessária. Aquilo a que se
chama democracia, e que se pretende que seja o governo do povo por si
mesmo, é na realidade o governo do povo por governantes eleitos e
dever-se-ia antes chamá-lo oligarquia consentida.”
“Mesmo no governo mais democrático, há sempre os que ordenam ou proíbem, e os que obedecem.”
“...os
anarquistas vão mais longe e sublinham que não temos nenhuma obrigação
para com o governo que elegemos. Podemos obedecer-lhe porque estamos de
acordo ou porque somos demasiado fracos para desobedecer, mas nada nos
força a obedecer-lhe quando estamos em desacordo e somos fortes o
suficiente para nos recusar a fazê-lo.”
Estado e Classe
“O Estado não pode redistribuir eqüitativamente a riqueza porque é o principal instrumento da distribuição injusta”.
Organização e Burocracia
“...logo que a obrigação seja substituída pelo consentimento, haverá mais discussões e planos, não menos.”
“O que
os anarquistas rejeitam é a institucionalização da organização, o
estabelecimento de um grupo particular cuja função é organizar outras
pessoas. A organização anarquista seria fluida e aberta; assim que uma
organização endurece e se fecha, cai nas mãos de uma burocracia,
torna-se instrumento de uma classe e expressão da autoridade, em vez de
elo de coordenação da sociedade. Todo o grupo tende para a oligarquia, o
governo de poucos, e toda a organização tende para a burocracia, o
governo dos profissionais; os anarquistas devem lutar sempre contra tais
tendências, tanto hoje como amanhã, quer na própria casa quer na casa
alheia.”
A Propriedade
“...o
direito de uma pessoa sobre um objeto não repousa no fato de o ter
fabricado, encontrado, comprado, recebido, de o utilizar ou de o
desejar, ou de ter um direito legal sobre a coisa, mas no fato de ter
necessidade dela – mais ainda, de ter mais necessidade dela do que
qualquer outra pessoa. Não é uma questão de justiça abstrata ou de lei
natural, mas de solidariedade humana e de bom senso. Se eu tiver um
pedaço de pão e se tu tiveres fome, ele é teu, não meu. Se eu tiver um
casaco e tu tiveres frio, ele pertence-te. Se eu tiver uma casa e se tu
não tiveres, tens o direito de utilizar pelo menos um dos meus quartos.
Mas, em outro sentido, a propriedade é liberdade – quer dizer que o gozo
de bens em quantidade suficiente é uma condição essencial para uma vida
agradável para o indivíduo.
Os
anarquistas são pela propriedade privada do que não pode ser utilizado
para explorar outrem – esses objetos pessoais que acumulamos desde a
infância e que fazem parte da nossa vida. Mas somos contra a propriedade
pública que não é útil em si mesma e só pode servir para a explorar, a
propriedade fundiária e imobiliária, os instrumentos de produção e
distribuição, matérias-primas e artigos manufaturados. O princípio,
afinal de contas, é que um homem pode ter direito sobre o que produz
pelo próprio trabalho, mas não sobre o que obtém pelo trabalho dos
outros; tem direito sobre aquilo de que tem necessidade e que utiliza,
mas não sobre aquilo de que não tem necessidade e não pode utilizar.
Desde que um homem tem mais do que o suficiente, ou esbanja ou impede
outrem de ter o suficiente.”
“Ninguém
se tornou rico nem continuou a sê-lo pelo seu próprio trabalho, mas só
explorando o trabalho de outros.” – (discordo desta sentença, tendo em
vista que não leva em conta de forma completa a remuneração advinda
daqueles que trabalham de forma autônoma com serviços, como por exemplo
um consultor, palestrante, dentista, veterinário, médico, artesão ou
artista... Alguns destes e muitos outros podem ser muito bem-sucedidos e
chegarem a enriquecer)
Deus e a Igreja
“Muitas
pessoas dão ainda os primeiros passos para o anarquismo perdendo a fé e
tornando-se racionalistas ou humanistas; a recusa da autoridade divina
encoraja a recusa da autoridade humana. A maioria dos anarquistas hoje é
provavelmente atéia, ou pelo menos agnóstica.”
O Indivíduo e a Sociedade
“Uma
liberdade sexual extrema poderá convir a um e uma extrema castidade a
outro (...). O mesmo princípio aplica-se às drogas: as pessoas podem
intoxicar-se com álcool , com cafeína, com haxixe ou com anfetaminas,
com tabaco ou com ópio, e não temos nenhum direito de as impedir de o
fazerem, de as castigarmos, conquanto se possa tentar ajudá-las.”
As diversas correntes do anarquismo
O Anarquismo Filosófico
“Na
origem, o anarquismo era o que se chama agora anarquismo filosófico. É a
idéia que uma sociedade sem governo é bela, mas não verdadeiramente
desejável, ou então é desejável, mas não verdadeiramente possível, pelo
menos por enquanto. Tal atitude domina todos os escritos anteriores a
1840 e isso impediu os movimentos populares anárquicos de se tornarem
uma ameaça mais séria para os governos. É uma atitude que se encontra
ainda nos que se dizem anarquistas, mas ficam à margem de todo o
movimento organizado, e também em algumas pessoas situadas dentro do
movimento anarquista.”
Individualismo, Egoísmo, Corrente Libertária
“O
primeiro tipo de anarquismo que foi mais que simplesmente filosófico foi
o individualismo. É a idéia de que a sociedade não é um organismo, mas
uma coleção de individualidades autônomas que não tem nenhuma obrigação
para com a sociedade, mas apenas umas para com as outras.”
“A primeira pessoa a elaborar uma teoria claramente anarquista foi individualista: William Godwin, em An Enquiry concerning Political Justice (Investigação sobre a Justiça Política, obra publicada em 1793.
“É o
anarquismo dos intelectuais, dos artistas e dos não-conformistas, das
pessoas que trabalham sós e preferem ficar à margem.” Walter exemplifica com nomes como Shelley, Wilde, Emerson, Thoreau, Augustus John e Herbert Read.
Walter interpreta Max Stirner, em Der Einzige und sein Eigentum
(O Único e sua Propriedade), obra publicada em 1843: “o seu egoísmo
difere do individualismo em geral, porque rejeita abstrações tais como a
moralidade, a justiça, a obrigação, a razão, o dever, em proveito de um
reconhecimento intuitivo da existência única de cada indivíduo. Recusa
evidentemente o Estado, mas recusa igualmente a sociedade e tende para o
niilismo (a idéia de que nada tem importância) e o solipsismo (a idéia
de que nada existe fora de si mesmo).
Mutualismo e Federalismo
“O tipo
de anarquismo que aparece quando os individualistas põem as idéias em
prática é o mutualismo. É a idéia de que, em vez de entregar-se ao
Estado, a sociedade deveria ser organizada por indivíduos que
concluíssem entre si acordos voluntários, em uma base de igualdade e
reciprocidade.”
“Pierre-Joseph Proudhon, em Qu’est-ce que la propriété? (O que é a propriedade?), obra publicada em 1840, postulou
uma sociedade composta de grupos cooperativos de indivíduos livres,
trocando os produtos indiscpensáveis à vida na base do valor do trabalho
e permitindo o crédito gratuito graças a um Banco do Povo. É o
anarquismo dos artesãos, dos pequenos proprietários e pequenos
comerciantes, dos que exercem profissões liberais e técnicas, das
pessoas em suma que estão apegadas à sua independência.”
“O mutualismo econômico pode assim ser considerado como um cooperativismo menos a burocracia, ou um capitalismo menos o lucro.”
“O traço
essencial do anarquismo federalista é que os membros de tais conselhos
seriam delegados sem nenhuma autoridade executiva, imediatamente
revogáveis, e que os conselhos nÃo teriam nenhum poder central, mas
apenas um simples secretariado. Proudhon, primeiro teórico do
mutualismo, foi também o primeiro teórico do federalismo – na obra Du principe fédératif (Do princípio federativo), publicada em 1863.”
“Os
sistemas internacionais de coordenação das ferrovias, da navegação, das
ligações aéreas, dos serviços postais, do telégrafo e do telefone, da
pesquisa científica, das campanhas contra a fome ou contra os sinistros,
e muitas outras atividades à escala mundial são essencialmente de
estrutura federativa.”
Coletivismo, Comunismo, Sindicalismo
“Os
instrumentos de trabalho serão de propriedade coletiva, mas os produtos
do trabalho serão distribuídos segundo a fórmula: “De cada um segundo
suas capacidades, a cada um segundo o seu trabalho” Os primeiros
anarquistas modernos – os bakuninistas da Primeira Internacional – eram
coletivistas” (...), reinvindicavam “o anarquismo da luta de classes e
do proletariado, da insurreição em massa dos pobres contra os ricos e a
passagem imediata a uma sociedade livre e sem classes, sem nenhum
período transitório de ditadura. É o anarquismo dos operários e dos
camponeses que têm uma consciência de classe, dos militantes do
movimento operário, dos socialistas que querem tanto a liberdade como a
igualdade.”
“O tipo
de anarquismo que aparece num coletivismo mais elaborado, é o comunismo.
É a idéia de que não é suficiente que os meios de produção sejam
propriedade de todos, mas que os produtos do trabalho devem também ser
postos em comum e distribuídos segundo a fórmula: “De cada um segundo as
suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades.” Walter cita
como anarquistas-comunistas: Kropotkin, Malatesta, Reclus, Grave, Faure,
Goldman, Berkman, Rocker.
“O
comunismo anarquista ou libertário não deve ser evidentemente ser
confundido com o comunismo muito mais conhecido dos marxistas –
comunismo baseado na propriedade coletiva da economia e no controle do
Estado sobre a produção e a distribuição e baseado também na ditadura do
Partido.”
“Os
anarquistas só raramente são verdadeiros comunistas, em parte porque são
sempre demasiado individualistas, e em parte também porque se recusam a
fazer planos precisos para um futuro que deve ter liberdade plena para
organizar-se.”
O que querem os anarquistas?
O Indivíduo Livre
“Tudo o
que é necessário para a libertação do indivíduo é a emancipação dos
velhos preconceitos e a obtenção de um certo nível de vida. O verdadeiro
problema é a libertação da sociedade.”
A Sociedade Livre
“Em vez
de um governo formado por representantes permanentemente eleitos
ocasionalmente e por burocratas de carreira quase inamovíveis, os
anarquistas querem uma coordenação efetuada por delegados temporários,
imediatamente revogáveis, e por peritos profissionais de fato
responsáveis. Em tal sociedade, todas as atividades sociais que implicam
uma organização, seriam provavelmente administradas por associações
livres. Pode-se chamar-lhes conselhos, cooperativas, coletividades,
comunas, comitês, sindicatos ou sovietes, ou qualquer outra coisa...”
O Trabalho
“As
necessidades elementares do Homem são a alimentação, o teto e o
vestuário, que lhe permitem sobreviver; as necessidades secundárias são
algumas comodidades suplementares, que fazem com que a vida valha a pena
ser vivida.”
“A
maioria dos economistas preocupou-se mais com a produção do que com o
consumo (...). Os homens de esquerda e de direita querem todos que a
produção aumente, ou para que os ricos enriqueçam, ou para que o Estado
se reforce, e daí resulta uma “sobreprodução” vivendo lado a lado com a
pobreza...”
“Os
anarquistas preocupam-se mais com o consumo do que com a produção – com a
utilização dos bens para a satisfação das necessidades de todos, não
para o aumento do lucro dos ricos e poderosos.”
A Sociedade do Bem-Estar
“Vários
pensadores anarquistas trouxeram contributos de valor à teoria e à
prática da educação e vários reformadores da educação tiveram tendências
libertárias – de Rousseau e Pestalozzi a Montessori, A. S. Neill e
Freinet. Idéias que se julgava utópicas, estão agora integradas no
ensino tanto público quanto privado e a educação é talvez o domínio da
sociedade mais entusiasmante para os que querem pôr o anarquismo em
prática. Se nos disserem que o anarquismo é uma idéia atraente mas
inaplicável, basta-nos mostrar uma escola de vanguarda, uma turma de
adaptação praticando métodos ativos, um clube de jovens autogerido.”
“Os
adultos encarregados da educação têm geralmente tendência para controlar
todas as suas formas; na verdade, não é necessário que ela seja
controlada por eles, nem por razões ainda mais óbvias pelas pessoas que
nada têm a ver com o assunto.
Os anarquistas gostariam
que as reformas atuais do ensino fossem muito mais longe. Não se
deveria abolir apenas a disciplina rígida e os castigos, dever-se-ia
abolir toda a disciplina e toda a punição. Não se deveria libertar as
instituições de ensino apenas do poder das autoridades exteriores, os
próprios alunos deveriam ser libertos do poder dos professores e dos
diretores. Numa relação educativa sã, o dato de um saber mais do que o
outro não é a razão para que o professor tenha uma autoridade qualquer
sobre o aluno. O estatuto dos mestres na sociedade atual baseia-se na
idade, na força, na experiência, na lei; mas o único estatuto que os
mestres deveriam ter, deveria basear-se nos seus conhecimentos em
determinado campo e na capacidade para ensinamentos em determinado campo
e na capacidade para ensiná-lo e, por fim, na capacidade para
inspirarem a admiração e o respeito.”
“O problema essencial é quebrar o elo entre ensinar e governar e libertar a educação.”
“Que
pensam os anarquistas da delinqüência? Em primeiro lugar, consideram que
a maioria daqueles a que se chama criminosos, são como as outras
pessoas, apenas um pouco mais pobres, mais fracos, mais loucos, mais
infortunados; em segundo lugar, que os que prejudicam os outros vezes e
vezes sem conta, não deveriam ser punidos a seu turno, mas que seria
necessário que alguém tomasse conta deles. Os maiores criminosos não são
os arrombadores, mas os patrões; não são os gângsteres, mas os
governantes; não são os assassinos, mas os que exterminam em massa.
Algumas injustiças menores são amarradas ao pelourinho e punidas pelo
Estado, enquanto as maiores injustiças da sociedade atual são
dissimuladas e mesmo cometidas pelo próprio Estado. Em geral, a punição
causa um dano maior à sociedade que o crime; é mais sistemática, está
melhor organizada e é muito mais eficaz.”
“Como último recurso (para a delinqüência), não se imporá a prisão nem a pena de morte, mas o boicote ou a expulsão.”
O Pluralismo
“...é difícil que alguém se baste literalmente a si mesmo.”
“Um
perigo maior pode vir da parte de grupos independentes. Uma comunidade
separada poderá existir facilmente em uma sociedade e poderá provocar
graves tensões; se regressar ao sistema de propriedade e de autoridade, o
que poderá aumentar o nível de vida de uma minoria, outras sentir-se-ão
tentadas a juntar-se aos separatistas, particularmente se a sociedade
no conjunto atravessar um período difícil.”
Revolução ou Reforma
“O que
os anarquistas querem, é uma pressão constante que leve ao convencimento
dos indivíduos, à formação de grupos, à reforma de instituições, ao
levantamento do povo e à destruição da autoridade e da propriedade. Se
isso acontecesse sem desordem, satisfaria os nossos desejos; mas nunca
assim aconteceu e provavelmente nunca acontecerá. Chega o momento em que
é preciso sair da casca e afrontar as forças do Estado no bairro onde
vivemos, tanto mais será preciso continuar a agir, para impedir o
estabelecimento de um novo Estado e para se começar a construir uma
sociedade livre.”
O que fazem os anarquistas?
A
primeira coisa que os anarquistas fazem , é pensar e falar. Poucas
pessoas são anarquistas de nascença e é uma experiência perturbadora
passar a sê-lo, que implica um considerável revolucionamento emotivo e
intelectual. Um anarquista consciente está sempre numa situação difícil
(mais ou menos, digamos, como um ateu na Europa medieval); é difícil
transpor as barreiras do pensamento e persuadir as pessoas de que a
necessidade do governo (como a existência de Deus) não é uma coisa clara
em si mesma, mas que pode ser posta em questão a mesma rejeitada. Um
anarquista deve elaborar completamente uma nova visão do mundo e uma
nova maneira de nele agir; isso se faz em geral em conversas com pessoas
que são anarquistas ou estão próximas do anarquismo, particularmente em
grupos ou atividades de esquerda.”
“Um anarquismo que não transparece na vida pessoal e cotidiana não inspira verdadeiramente muita confiança.”
A Organização e a Propaganda
“A forma
inicial da organização anarquista é o grupo de discussão. Se se revela
viável, desenvolver-se-á em duas direções: criará ligações com outros
grupos e alargará o campo de atividade.” Nicolas Walter cita como meios a
serem utilizados o rádio, a televisão, o cinema, o teatro e a
literatura em geral.
“Tem de
se ir além da simples propaganda de duas maneiras: discutindo problemas
particulares no bom momento e de maneira imediatamente eficaz, ou
chamando atenção por meio de qualquer coisa mais incisiva e dramática do
que as simples palavras. A primeira maneira é a agitação; a segunda, a
propaganda pelo ato.”
“A
agitação é o lugar onde a teoria política afronta a realidade política. A
agitação anarquista é útil, a partir do momento em que as pessoas estão
particularmente receptivas ao que propõe, por causa de qualquer tensão
no sistema estatal: durante guerras civis ou nacionais, durante lutas
industriais ou agrárias, quando de campanhas contra a opressão ou quando
surgem escândalos públicos – e consiste essencialmente numa propaganda
com os pés assentes na terra, realista e realizável. Numa situação em
que a tomada de consciência é rápida, as pessoas não se interessam tanto
por especulações teóricas gerais como por propostas específicas.”
“...a
propaganda pelo ato é essencialmente de natureza não-violenta, ou pelo
menos faz-se sem violência, e opõe-se mais às bombas do que as defende.
(...)... reveste-se das seguintes formas: sit-downs e sit-ins,
greves não controladas e não regulamentadas, ocupações, apupos
organizados e manifestações selvagens. A propaganda pelo ato não é
necessariamente ilegal, mas na prática é-o muitas vezes. A desobediência
civil é um tipo particular de propaganda pelo ato que implica a
infração aberta e deliberada das leis para atrais a atenção.”
“A
agitação, sobretudo quando surte o efeito desejado, e a propaganda pelo
ato, sobretudo quando é ilegal, vão muito mais longe do que a simples
propaganda.”
A Ação
“Uma das tendências pessimistas mais fortes no anarquismo é o niilismo. A palavra foi criada por Turgueniev (no romance Pais e filhos)
para descrever a atitude cética e de desprezo dos jovens populistas
russos um século atrás, mas pôs-se a significar o ponto de vista que
denega qualquer valor não só ao Estado ou à moral dominante, mas também à
sociedade e à própria humanidade; para o niilista rigoroso, nada é
sagrado, nem sequer ele mesmo – destarte dá um passo a mais que o
egoísta convencido.
Uma forma extrema de ação inspirada pelo niilismo é o terrorismo pelo terrorismo, mais do que por vingança ou por propaganda.”
“Uma
forma atenuada de ação inspirada pelo niilismo é a boêmia: (...) em vez
de atacar a sociedade, o boêmio escapa dela – ainda que nela viva e a
seu cargo, muito embora viva sem se conformar com os valores da dita
sociedade.”
“Há
outra forma de ação baseada em uma visão pessimista do futuro do
anarquismo: o protesto permanente. Segundo este ponto de vista, não há
nenhuma esperança de mudar a sociedade, de destruir o sistema estatal,
nem de pôs o anarquismo em prática. O importante não é o futuro, a
adesão estrita a um ideal determinado e a elaboração cuidadosa de uma
bela utopia, mas o presente, o reconhecimento tardio de uma amarga
realidade e a resistência constante a uma situação intolerável.”
“...a
maior parte da atividade anarquista é vivida como uma ação de vanguarda,
ou pelo menos como uma ação de pioneiros empenhados em um combate que
podemos não ganhar e que pode nunca mais acabar, mas que vale sempre a
pena travar.”
“...o
que podemos sugerir de mais importante não é apenas que o fim não
justifica os meios, mas também que os meios determinam o fim: os meios
são fins, na maior parte dos casos. Podemos estar certos das nossas
próprias ações, mas não das suas conseqüências.”
“Cada
indivíduo é um mundo (um mundo com os seus sonhos, desejos, atrações,
repulsões, recalcamentos e desinibições)... e é único... e é sempre a
partir desta pluralidade de unicidades que temos de nos entender. Todo
indivíduo consciente reage violentamente contra qualquer nivelamento
uniformizador feito autocraticamente de cima para baixo ou à custa da
sublimação individual. Sabe que não é nem mais nem menos do que qualquer
outra pessoa e não precisa afirmar-se em detrimento de ninguém, nem de
se anular em nome de altos valores que se levantem.”
“O
individualista anarquista (...) é uma autêntica “máquina” ávida de
relações imediatas com o meio ambiente onde se desenvolveu, é um belo
animal sedento de relações não mediatizadas com seus afins.”
“Até o
altruísta mais sincero, ao sentir prazer na felicidade honesta de outrem
e ao considerar a liberdade dos outros como uma confirmação da sua
liberdade, é um egoísta. O seu egoísmo, claro está, não se confunde com o
egoísmo bossal do capitão de indústria que explora a mão-de-obra
assalariada e diz depois que criou generosamente novos postos de
trabalho, nem com o “altruísmo” farisaico do homem público que faz
promessas e dá grandes palmadas no rabo do corpo eleitoral.”
Nicolas Walter cita um trecho do livro Ensaio sobre o Dom
de Marcel Mauss: “Felizmente, ainda nem tudo está classificado em
termos de compra e venda. As coisas ainda têm um valor de sentimento,
além do valor venal, se é que há valores que sejam
unicamente deste gênero. Não temos apenas uma moral de mercadores.
Restam-nos pessoas e classes que ainda têm os costumes de outrora e
diante deles inclinamo-nos quase todos, pelo menos em certas épocas do
ano ou em certas ocasiões.” E conclui: “Por que não voltaria o Dom,
construtivamente considerado e não com o caráter de dilapidação infantil
do potlach, a emergir como regra informal da sociedade do futuro?
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